terça-feira, 26 de maio de 2009

Um "eca"! para os invisíveis

A exclusão em que vivem as crianças moradoras de rua no Brasil compreende uma de nossas grandes contradições, resultante do egoísmo de uma sociedade e Estado cruéis, hipócritas, incapazes de refletir e agir racionalmente em relação às suas mazelas. A ausência de políticas públicas promovem a invisibilidade desses indivíduos, pois tornaram-se um embaraço para o ente estatal uma vez que estão longe do topo das prioridades. Esses jovens ainda experimentam a rejeição generalizada, fruto do medo de uma população preconceituosa e que insiste em estereotipá-los, aprofundando sobremaneira a desigualdade que os domina.
Historicamente, o processo no qual se ampliou a percepção identitária acerca da criança, marcou-se por rupturas significativas. Tomando como referência a antiguidade clássica, a partir de Roma, o "gozo" da infância estava condicionado à avaliação do pai no que concerne ao estado físico da criança: se nela fosse identificado algum "defeito", possuía o genitor o direito de eliminá-la. Tal preceito se mostra atualmente repulsivo, porém, a continuidade da estrutura econômica romana, baseada nas guerras de conquista e escravização, impunha a existência de guerreiros aptos (sem mácula física) a servir à nação.
No medievo, período caracterizado pelo obscurantismo, a criança é vista como impura, em cujo processo educacional incidia a ironia, os castigos físicos e morais, embora no séc. XI Santo Anselmo contrastasse esse modelo a partir de uma pedagogia que valorizava a "gentileza e os bons exemplos".
Chegamos então à contemporaneidade, onde a concepção acerca da infância é construida sob caminhos sinuosos, desde a naturalidade com que se enxergava a presença infantil nas fábricas, obrigando uma postura mais positiva do Estado no sentido de contemplá-las no ordenamento jurídico, até a adoção de dispositivos legais voltados a não mais regulamentar a atividade laboral infantil, mas extinguí-la. A presença da criança nas fábricas é entendida agora como inadequada, a escola ganha o status de espaço próprio à construção da vida social.
No caso brasileiro, conquanto o vanguardista Estatuto da Criança e do adolescente (ECA) reflita a necessidade de um tratamento que considere a população infanto-juvenil a partir de sua vulnerabilidade - sobretudo os que "moram" nas ruas -, a sociedade e o Estado parecem exprimir um verdadeiro "eca!" ( expressão que denota nojo ) para essa questão. Esses jovens, oriundos dos bolsões de miséria, estão lançados à própria sorte, num processo de marginalização cuja intervenção do Estado se mostra eminentemente repressiva, marcada por tratamento desumano, haja vista os índices de assassinatos contra crianças e adolescentes que vivem nos grandes centros urbanos brasileiros perpetrados por grupos de extermínio - muitos dos componentes criminosos travestidos de policiais.
Cumpre observar também o quão perverso pode ser o conteúdo simbólico a recair sobre esse drama, pois a violência simbolicamente construída, cujo próposito é mascarar a realidade ao fazer repousar no inconsciente coletivo uma sensação de normalidade, compõe-se de uma sutiliza sem igual. O que dizer, por exemplo, daquele café da manhã dos sonhos patrocinado pelo extinto programa da Xuxa, acompanhado de seu sexualizante chamado: "E vem!, e vem! ,e vem!..."? Esse convite, construído sob o discurso de estímulo à adoção de hábitos alimentares saudáveis por parte das crianças, não se estendia, indubitavelmente, aos milhões de miseráveis filhos de nossa "pátria- mãe- gentil", revelando o descompasso, crueldade e sutileza mastodôntica das élites deste país em relação às contradições sociais.
Portanto, compreender o processo de exclusão de crianças moradoras de rua requer que atentemos para as diferentes concepções, em diferentes épocas, sobre a identidade destas, afim de perceber como se relacionam com nossa tragédia nacional. Em Roma antiga, a criança, vista sob a ótica funcional, não admitia deficiência física, condição intolerável porquanto inapta aos objetivos do Estado; hoje, a despeito do avanço na área dos Direito Humanos, a sociedade brasileira insiste em negá-los também ao segmento infanto-juvenil - negando-lhes portanto a infância -, pois este distoa do ideal familiar burguês, e, nesse sentido, sua inconveniente presença nas ruas nos constrange, impelindo-nos à rejeição. Nesse contexto, encontra-se imbricada a idéia de impureza das crianças, fortemente presente na Alta Idade Média. Os nossos atuais "impuros", sob todos os aspectos, parecem não merecer desfrutar da condição de sujeitos de direito, uma vez que a parca assistência que lhes é direcionada, provém, geralmente, de entidades não governamentais, cujas ações, embora altamente positivas, parecem produzir uma espécie de letargia estatal, percebida na falta de prioridade a esse problema. Não deve nos escapar que, embora nossas leis sejam comparáveis a um ordenamento jurídico escandinavo, pouco se verifica a observância delas em relação às "crianças de rua". Tal deficiência se faz identificar no desrespeito à pribição do trabalho infantil, cuja motivação reside na importância dada à escola, reconhecida como principal pilar à elaboração cívica. Esses jovens, quando, milagrosamente não são cooptados pelo crime, vêem-se explorados a torto e a direito, sobretudo na prestação de "favores" ( lavagem de carros, trabalhos domésticos etc. ) àqueles que deveriam, por um um dever cidadão, zelar pela garantia da dignidade humana.
Hipocrisia, egoismo e crueldade constituem ingredientes vitais ao aprofundamento do estado de vulnerabilidade a que estão expostas as crianças que residem nas ruas brasileiras. Se, por um lado, a inépcia do Poder Público corrobora tal situação, igualmente o faz a insensibilidade de uma sociedade que prefere fechar os olhos para uma tragédia assistida cotidianamente.

sábado, 23 de maio de 2009

Comunidade dos felizes


O palhaço é um dos personagens mais fascinantes que existem. Sua irreverência não encontra limites. Impressiona pela ludicidade, malícia e desfaçatez que brotam de cada ato realizado, seja uma piada ou brincadeira que constrangem e ao mesmo tempo alegram. Quem nunca riu de uma performance desse cara-pintada, cuja imagem, para mim, sempre foi a caricatura tradutora de uma certa alegria triste, um temor que o anima a atuar pelo medo de que as luzes da ribalta se apaguem?
Sempre apreendi o circo - a casa do palhaço - como um microcosmo refletindo nossa tentativa a permanecer no faz-de-conta, pelo fato de que nem sempre levamos em conta o tempo que desperdiçamos longe da alegria. O cenário circense compreende uma extensão daquela dimensão interior escondida, na qual é possível e adequado ser um peixe fora d'agua, um cisne entre patos, um sapo-príncipe capaz de encantar a mais linda donzela.
Assim como não há festa sem anfitrião, não pode haver circo sem palhaço: ele é o maestro sob as lonas; o picadeiro é seu palco, território impenetrável aos que não sabem fazer da vida um eterno festim.
O circo é a comunidade dos felizes, e o palhaço, qual poeta a ritmar gestos e frases aparentemente desconexas, reflete a graça estereotipada da criança em tenra idade - alegria caótica em meio à ordem do encanto.
O circo acorda, se ergue. Nele, o palco é comum a todos. O trapezista voa, num vai e vem hipnótico e de pura tensão; o equilibrista impressiona pela destreza, e o palhaço, um trapalhão sem igual, é a inequívoca desordem da alegria.
Nossa vida deveria reproduzir a arte circense, caracterizada por um incessante desejo de celebração. O problema é que o palhaço, dentro de nós, quase sempre é preterido pelo desafio do trapézio, com suas idas e vindas, e, quando dele cansamos, só resta nos lançarmos a alguma rede de amparo. À semelhança do circo, o trapézio da vida se compõe de uma apreensão, uma vontade de que a incerteza do vai e vem logo acabe, e, se ao final saimos ilesos, então lembramo-nos de que só uma boa palhaçada para alegrar o coração.
Em uma sociedade marcada pelas emulações insanas, valores deturpados, consciências cativas a um sistema que forja seres supérfluos como crianças a girar num carrossel de vaidades, a palavra palhaço passou a ser pejorativamente designada representação da imbecilidade humana. Nos palcos ilusórios da arrogância, o palhaço não tem vez, recebe o castigo do degredo por se insurgir contra os que tentam negá-lo através de uma alegria artificial dos seres claudicantes de um picadeiro sem graça. Para o palhaço, "o show tem que continuar", pois nele mora a alma do artista, um artífice a dar forma ao seu objeto: o riso.
Paradoxalmente, os que claudicam tentando negar-lhe a maestria na arte de fazer rir, sempre o invocam para servir a seus propósitos, ou não é verdade que os maus políticos, por exemplo, se nos afiguram palhaços ao investir-se de uma retórica pitoresca?
Ao palhaço, cultor da arte rara ( fazer rir), devemos abrir as portas do coração, para que não seja mitigada a alegria, amparo às inevitáveis quedas que experimentamos. Cultivemos esse companheiro oculto presente em nosso interior, sob pena de mergulharmos nas trevas do mau- humor, no fardo da neurastenia precoce. Iluminemos os candelabros que aquecem o coração com boas palhaçadas e perseveremos em vigílias constantes para que essa chama nunca se apague.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Fábulas para o coração


Desde cedo, a tensão é componente permanente no campo das relações humanas. A vida pueril, embora mágica, grávida de fantasias e sonhos, não exclui os choques entre os indivíduos. Essa realidade é verificada no próprio processo de construção de amizades, onde as crianças nem sempre se identificam instantaneamente umas com as outras. Essa é uma etapa importante, a partir da qual se constituem as escolhas, predileções, opções pela tolerância em nome do afeto, representando os primeiros sinais para elaboração de uma estética comportamental includente.
Infância e amizade são binômio pivotal no campo de construção da subjetividade humana; fase e substântivo, ruas transversais, continente e contido, pólos que não se antagonizam, antes, se entremeiam um no outro para formar o lindo projeto de humanidade, pois não é difícil constatar que a criança é promotora de um olhar capaz de afinizar os descaminhos, compatibilizar os opostos, e isso a partir do encanto, da inocência e de uma 'paz perturbadora'.
Essa percepção se apederou de mim quando prôpus a meu sobrinho de cinco anos brincarmos de contar historinhas. Ele não estava muito afim, queria era brincar de monstro (claro que o monstro seria eu, e ele o super-herói), mas consegui dissuadi-lo ao inventar uma esdrúxula narrativa do encontro da sucuri ziguifrina com o tamanduá bandeira. Contei-lhe que ambos são espécies típicas do nosso Brasil; a cobra possuia um mortal abraço e o tamanduá o insólito hábito de comer formigas. Ao avistar Ziguifrina, o ingênuo tamanduá aproximou-se e a cumprimentou. A cobra muito astuta, encaminhou-se para abraçá-lo. Ele consentiu, porém, percebeu que aquele abraço demorava e o oprimia muito, quando então sugeriu à sucuri que lhe permitisse beijá-la. Tendo-o muito próximo ao corpo, sabia ela que o inocente tamanduá jamais lhe escaparia, por isso resolveu aliviar-lhe um pouco a opressão, consentindo o beijo. O que ela não sabia é que o pequeno bandeira, como era conhecido, trazia à boca uma centena de formigas saúvas, que foram de pronto depositadas em suas entranhas, fazendo-a contorcer-se a ponto de disparar em direção ao rio, desesperada para livrar-se do cardápio pedileto do 'little bandeira'.
Ora, não querendo dar trégua, pois já percebia meu ouvinte entre bocejos e piscar de olhos sonolentos ao final da fábula, despachei uma segunda. Agora, tratava-se do encontro do ursinho coala e a mamãe canguru.
A mamãe canguru buscava ao pé de uma árvore algum alimento para ela e seu filhote; o coala, agora órfão, pois se desgarrara de sua mãe, trepava nessa mesma árvore para comer folhas. Lentamente, o ursinho se dirigia a um galho, quando viu a mamãe canguru colhendo frutos. Isso o encheu de cólera, pois adotara aquela árvore como lar, cujos percipiendos frutos lhes pertenciam - dizia ele -, numa inarredável demonstração de convicção jurídica, que o compelia a uma espécie de exercício de cidadania animal.
Gritou alto:
- ei, não pegue os meus frutos!
A mamãe canguru respondeu:
- Mas você nem os come. Não fazem parte de sua dieta.
Nesse instante, o coala, exasperado pela emoção do embate, despencou da árvore, e veio pousar na bolsa da mamãe canguru, reunindo-se a seu filhote. Um pequeno bate-boca se iniciou, pois o bebê canguru não admitiu dividir o mesmo espaço com "um estranho no ninho", mas, ao tomar conhecimento de que o coala era órfão, instaurou-se uma atmosfera de compaixão e o pequeno ursinho incorporou-se à sua nova familia.
A essa altura, Vitor, meu sobrinho, já rendia-se a meu lado, tomado pelo sono, o que me levou a constatar que fui ouvinte e narrador, simultaneamente, de um delírio maravilhoso que só a infância e amizade dele poderiam provocar.
Esta experiência me levou a fortalecer a crença de que nossa alma pode, a despeito das tensões cotidianas, ser irrigada permanentemente pelas pulsões infantis, aquelas que revelam que a inocência pode produzir fugas criativas, como no caso do pequeno tamanduá; oxigenar a misericórdia, demonstrada na postura inclusiva da mamãe e bebê cangurus. Sei que podemos enxergar a infância - ao menos a lembrança dela - como o tempo em que os choques produzem alternativas para a comunhão, quando, por exemplo, dividiamos compulsoriamente um brinquedo com um primo que veio nos visitar no final de semana, onde as disputas conduzem todos à condição - ainda que alternando o primeiro lugar -, de campeões, pois no campo dos sonhos, das lindas viagens imaginativas, somos de fato.
Agora, a amizade de meu pequeno Vitor me faz robusto, com o coração cheio de fé de que um dia possa me tornar - ao menos para ele - um inescedível contador de historinhas.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Ensaio sobre o medo


Rendição e luta são as alternativas propostas pelo medo, companheiro implacável, incansável combatente daquela região sonhadora de nossa alma, na qual, a porta de entrada, invariavelmente, mostrar-se-á a de saída, a via perigosíssima, um atalho para o escape, o desejo de desistência, um fugaz desânimo, que logo se converte em perseverança.
Parece absurdo, mas, quando concebo o medo como um pólo imprescindível que se contrapõe e equilibra o ímpeto excessivo, a vontade desmedida e incapaz de ponderar, só consigo enxergá-lo como aquilo que dá sentido aos louros da conquista; o ingrediente essencial; o orvalho da manhã que, ao volatizar-se pelo calor do sol, se recomporá sob a forma de chuva, regando os vastos campos de nossa alma inquieta.
Na infância, a imagem do medo a povoar minha mente sempre foi a de um cavaleiro sombrio da idade média, que trás sobre si uma pesada armadura, nas mãos um escudo e uma longa e não menos pesada lança, onde o mesmo sempre irrompe em minha direção determinado a golpear-me mortalmente.
Essa alogoria, gerada pelo meu inconsciente, me provocou hoje o insight de que o tenebroso cavaleiro só se apresenta para a batalha protegido e armado, e não me refiro apenas ao escudo e dardo, mas, sobretudo, ao capacete. Esse, além de protegê-lo, esconde sua face dupla: uma que o mascara e compele sempre adiante, agressivo, altivo e aterredor; a outra, sempre oculta, encastelada num frio metal.
A relação que o medo nos impõe, portanto, é sempre tensa, violenta; tal qual um atacante feroz, o medonho cavaleiro se atira sobre nós, obrigando-nos a optar por uma, dentre duas alternativas: o recuo ou o combate.
Assim, encarar o medo não é tarefa fácil, pois ele está dentro de nós. Um inimigo externo enxergaríamos com clareza; o medo nos faz vacilar, duvidar, acomodar as coisas, reconhecer que baixar as armas será sempre a melhor saída. Mas, o que não sabemos, é que a vitória sobre o medo requer coragem não para enfrentarmos um adversário exterior, mas aquele que se origina no interior de nossos mais encantadores sonhos. E esta é a razão pela qual o medo salta em galopes estonteantes para intimidar, acuando-nos, sobretudo quando estamos tão próximos do êxito. Ele sabe que o sonho é sempre um convite para a comunhão, dividir a sensação de realização mesmo antes de se concretizar. O Raul dizia que "Sonho que se sonha junto é realidade". Sonhar junto é a essência do "maluco beleza", aquele que, serenamente, arrisca-se na peleja contra o medo em nome de seus sonhos. Ao contrário do medo (franco-atirador), o sonhador não se oculta, desnuda-se para galvanizar-se na esperança; não ataca, defende-se das setas de seu oponente para contra golpeá-lo com otimismo; não se insufla de arrogância, mas abriga-se sob o teto da humildade, convocando a todos para tomar carona em seu coração sonhador.
A impetuosa manifestação do medo, então, esconde um segredo, encobre uma verdade, para a qual, quase sempre estamos despreparados a encarar: enxergá-lo como uma ferramenta a nosso favor. Antes de qualquer conquista, ele se afigura terrível, nos faz sentir ansiedade, complexo de inferioridade, o mais órfão de todos os seres; com a vitória, a ansiedade cede lugar ao alívio; o complexo, ao mais alto grau de auto-confiança; a solidão, ao refrigério pelo reconhecimento.
Eis o segredo encoberto. A máscara foi destroçada ante a verdade e poder do sonho que anima e enche de cores luminosas o campo de batalha de onde nasce este inimigo e inseparável companheiro medo.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Fome de vida


Não quero planos. Eu quero é vida! A quero por desconfiar das insandecidas batalhas que se trava em nome daqueles. Os planos são definidos por simetria inalterável. Não os quero. Desejo a curva vital que sugere sempre um novo roteiro a seguir, sem pressa ou assombro.
Quais os seus planos agora?, me indagaria um ingénuo amigo ao considerar-me vencido em algum pleito. Lhe diria simplesmente nenhum. Quero apenas, sereno, sentir o frio na espinha, o travo amargo de minha própria saliva, conviver com minhas dores, dissabores, odores da mesma fonte que um dia exalou minha fragrância favorita.
Ao contrário do que possam pensar os pseudo leitores de alma, não estou imerso em depressão alguma, tampouco tomado pelo pessimismo. Reclamo o direito de não ceder ao apelo doentio dos que não enxergam correspondência entre a quietude e o movimento dinâmico de nossa caminhada existencial.
Por que correr atrás da vida, se, quando o fazemos, só o que conseguimos é perseguir o vento?;
qual o sentido da angustiante batalha diária que enfrentamos sintetizada na frase "matar uns inocentes leões por dia"?;
por que perpetuar o masoquismo de "correr atrás do prejuízo"?
Ao vento, cumpre deixá-lo seguir seu curso incerto; que os leões mitifiquem as savanas africanas em seu perpétuo reinado; e o prejuízo, quando comigo cruzar, que não lhe atribua eu proporções desmedidas.
Tal qual a poetisa Adélia, tudo o que não desejo é faca, muito menos queijo: "eu quero é fome". Fome por uma vida mais contemplativa, livre das amarras do desespero. Liberdade para errar ou acertar no interior de minha própria calma; ser absurdamente feliz com meus erros e traumas; encantado pelos estados de ignorância.
Eu quero a vida! Não a que se confunde com existência. A segunda impõe sacrifícios, ansiedades, vaidades, idas e vindas, encenações..., a primeira é plenitude, virtude, encantamento, percorrer o tempo sem pressa, seguir passo a passo as etapas de uma receita não prescritiva.
Não quero planos. Quero guiar-me sob o auxílio de meu inseparável cajado, com o qual toco não a rocha da ira mosaica, mas as águas amargas do deserto; as águas de Mara, que antecipam doze fontes de águas vivas.
Não quero planos. Quero a paciência de um Moisés ancião, cujas forças se renovam na esperança, poeticamente traduzida nos quarenta anos de travessia desértica.
Não quero planos. Eu quero a vida que pulsa no perdão redentor de um Messias que revigora a esperança do ladrão em seu derradeiro momento de existência.
Não quero planos. Anseio por me tornar pescador, sem conhecimento prévio do ofício, apenas um humilde aprendiz que tece, lava e lança sua rede ao mar.
Eu quero é vida! Sim. Aquela que se confunde com a fome de viver calmamente, sem as pressões das disputas, patrocinadora de um caminho novo, cheio de paz.
Eu quero é vida!