A exclusão em que vivem as crianças moradoras de rua no Brasil compreende uma de nossas grandes contradições, resultante do egoísmo de uma sociedade e Estado cruéis, hipócritas, incapazes de refletir e agir racionalmente em relação às suas mazelas. A ausência de políticas públicas promovem a invisibilidade desses indivíduos, pois tornaram-se um embaraço para o ente estatal uma vez que estão longe do topo das prioridades. Esses jovens ainda experimentam a rejeição generalizada, fruto do medo de uma população preconceituosa e que insiste em estereotipá-los, aprofundando sobremaneira a desigualdade que os domina.
Historicamente, o processo no qual se ampliou a percepção identitária acerca da criança, marcou-se por rupturas significativas. Tomando como referência a antiguidade clássica, a partir de Roma, o "gozo" da infância estava condicionado à avaliação do pai no que concerne ao estado físico da criança: se nela fosse identificado algum "defeito", possuía o genitor o direito de eliminá-la. Tal preceito se mostra atualmente repulsivo, porém, a continuidade da estrutura econômica romana, baseada nas guerras de conquista e escravização, impunha a existência de guerreiros aptos (sem mácula física) a servir à nação.
No medievo, período caracterizado pelo obscurantismo, a criança é vista como impura, em cujo processo educacional incidia a ironia, os castigos físicos e morais, embora no séc. XI Santo Anselmo contrastasse esse modelo a partir de uma pedagogia que valorizava a "gentileza e os bons exemplos".
Chegamos então à contemporaneidade, onde a concepção acerca da infância é construida sob caminhos sinuosos, desde a naturalidade com que se enxergava a presença infantil nas fábricas, obrigando uma postura mais positiva do Estado no sentido de contemplá-las no ordenamento jurídico, até a adoção de dispositivos legais voltados a não mais regulamentar a atividade laboral infantil, mas extinguí-la. A presença da criança nas fábricas é entendida agora como inadequada, a escola ganha o status de espaço próprio à construção da vida social.
No caso brasileiro, conquanto o vanguardista Estatuto da Criança e do adolescente (ECA) reflita a necessidade de um tratamento que considere a população infanto-juvenil a partir de sua vulnerabilidade - sobretudo os que "moram" nas ruas -, a sociedade e o Estado parecem exprimir um verdadeiro "eca!" ( expressão que denota nojo ) para essa questão. Esses jovens, oriundos dos bolsões de miséria, estão lançados à própria sorte, num processo de marginalização cuja intervenção do Estado se mostra eminentemente repressiva, marcada por tratamento desumano, haja vista os índices de assassinatos contra crianças e adolescentes que vivem nos grandes centros urbanos brasileiros perpetrados por grupos de extermínio - muitos dos componentes criminosos travestidos de policiais.
Cumpre observar também o quão perverso pode ser o conteúdo simbólico a recair sobre esse drama, pois a violência simbolicamente construída, cujo próposito é mascarar a realidade ao fazer repousar no inconsciente coletivo uma sensação de normalidade, compõe-se de uma sutiliza sem igual. O que dizer, por exemplo, daquele café da manhã dos sonhos patrocinado pelo extinto programa da Xuxa, acompanhado de seu sexualizante chamado: "E vem!, e vem! ,e vem!..."? Esse convite, construído sob o discurso de estímulo à adoção de hábitos alimentares saudáveis por parte das crianças, não se estendia, indubitavelmente, aos milhões de miseráveis filhos de nossa "pátria- mãe- gentil", revelando o descompasso, crueldade e sutileza mastodôntica das élites deste país em relação às contradições sociais.
Portanto, compreender o processo de exclusão de crianças moradoras de rua requer que atentemos para as diferentes concepções, em diferentes épocas, sobre a identidade destas, afim de perceber como se relacionam com nossa tragédia nacional. Em Roma antiga, a criança, vista sob a ótica funcional, não admitia deficiência física, condição intolerável porquanto inapta aos objetivos do Estado; hoje, a despeito do avanço na área dos Direito Humanos, a sociedade brasileira insiste em negá-los também ao segmento infanto-juvenil - negando-lhes portanto a infância -, pois este distoa do ideal familiar burguês, e, nesse sentido, sua inconveniente presença nas ruas nos constrange, impelindo-nos à rejeição. Nesse contexto, encontra-se imbricada a idéia de impureza das crianças, fortemente presente na Alta Idade Média. Os nossos atuais "impuros", sob todos os aspectos, parecem não merecer desfrutar da condição de sujeitos de direito, uma vez que a parca assistência que lhes é direcionada, provém, geralmente, de entidades não governamentais, cujas ações, embora altamente positivas, parecem produzir uma espécie de letargia estatal, percebida na falta de prioridade a esse problema. Não deve nos escapar que, embora nossas leis sejam comparáveis a um ordenamento jurídico escandinavo, pouco se verifica a observância delas em relação às "crianças de rua". Tal deficiência se faz identificar no desrespeito à pribição do trabalho infantil, cuja motivação reside na importância dada à escola, reconhecida como principal pilar à elaboração cívica. Esses jovens, quando, milagrosamente não são cooptados pelo crime, vêem-se explorados a torto e a direito, sobretudo na prestação de "favores" ( lavagem de carros, trabalhos domésticos etc. ) àqueles que deveriam, por um um dever cidadão, zelar pela garantia da dignidade humana.
Hipocrisia, egoismo e crueldade constituem ingredientes vitais ao aprofundamento do estado de vulnerabilidade a que estão expostas as crianças que residem nas ruas brasileiras. Se, por um lado, a inépcia do Poder Público corrobora tal situação, igualmente o faz a insensibilidade de uma sociedade que prefere fechar os olhos para uma tragédia assistida cotidianamente.
terça-feira, 26 de maio de 2009
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