terça-feira, 29 de julho de 2008

Mutantes: caminhos da alienação


A teledramaturgia no Brasil além de provar sua vocação para compor produções marcadas pela capacidade de interferirência na vida dos telespectadores - seja por engendrar modismos ou ideologias -, demonstra agora um período de tal modo ousado, que a utopia macabra, fruto da megalomania norte-americana, invade nossas telas, na qual seres mutantes personificam e projetam uma evasão da realidade capaz de assemelhar-se a qualquer engajamento ideológico holywoodiano outrora realizado.
Pois é, as novelas brasileiras que sempre se notabilizaram pelo fato de melhor incorporar a máxima "a arte imita a vida", aponta-nos, quem sabe, para uma era em que a ficção televisiva no Brasil não mais imita, e sim, 'cria a vida.' Pois essa é a tônica da novela Os mutantes, exibida pela tv Record, na qual uma geneticista psícopata manipula embriões em labaratório de modo a "aperfeiçoá-los", criando uma geração que carrega em seu código genético referências as mais diversas, as quais os dotam de poderes igualmente distintos.
Para além da percepção de que essa novela constitui-se apenas numa nada exitosa tentativa de plágio do clássico "A ilha do Dr° Monroo", e guia-se pela perspectiva da concorrência midiática - o que o faz, de fato -, ocorreu-me que essa utopia nos acompanha há muito tempo, e não reproduz apenas a maneira simbólica dos Estados Unidos da América marcarem o seu imperialismo, o qual se manifesta também nas produções de sua poderosa indústria cinematográfica, mas, arrisco dizer, que a desesperada tentativa humana de superar os limites impostos por nossa própria constituição biológica nos acompanha desde eras imemoriais.
A Bíblia nos relata que houve um homem, da geração de Caim, filho de Adão, chamado Ninrode, do qual provém a antiga expressão do Oriente médio:"Como Ninrode, poderoso caçador diante do Senhor", o qual fundou a proverbial cidade de Babel, situada na planície de Sinear, que em assírio é Bab-ilu, porta de Deus; em hebraico o verbo balal significa confundir(Gn10.10). De modo ainda que parcial, todos nós já ouvimos falar da história, na qual os homens, após o dilúvio, fizeram tijolos e fundaram essa cidade, a qual esperava-se que se torna-se o centro do mundo.(Gn11). Ora, sabe-se que uma torre presta-se ao propósito da vigilância, e compreendendo que aquela população derivava da que escapara da terrível enchente planetária - ou seja, Noé e seus filhos -, é de se especular que um certo temor apocalíptico se apoderasse deles, levando-os assim a edificar a grande torre de Babel.
O fato, é que, segundo as sagradas escrituras, Deus irou-se com os construtores da grande torre, pois o orgulho apoderou-se do coração deles à medida que conceberam o desejo de que a torre chegasse aos céus. Certamente a tentativa do homem tornar-se tal qual a transcendência Divina não se limita a manifestações de autodivinização, como foi o caso de César Augusto, em Roma antiga, mas estende-se a atitudes nas quais indivíduos, ainda que na ficção, buscam superar os limites de nossa matérialidade.
Há ainda um componente no mínimo curioso nessa história bíblica, ou seja, o castigo da confusão das línguas. Sem dúvida o desespero deve ter sido enorme, mas o ser humano possuia, em contrapartida, a dádiva da adaptabilidade, e essa lhe valeu para fazer da existência na terra algo muito interessante, pois as diferenças culturais, sociais e geográficas, provocaram a necessidade de edificação de torres não menos aldaciosas que a de Babel, as quais, segundo as palavras de Deus ao afirmar que "agora não haverá restrição para tudo o que intentarem fazer"(Gn 11:6), não permitem que a utopia da autodivinização humana se dilua.
Num exercício de reflexão, perguntava-me o que significaria a introdução de uma novela com tal característica no cenário do universo televisivo brasileiro, pois jamais ignorei o fato de que essas produções catalizam, de certa forma, alguma fração do inconsciente coletivo de nossa sociedade. Então um detalhe me chamou atenção: a novela em questão compõe-se do título "Os mutantes - caminhos do coração." Sim, eis o detalhe que me escapara, pois seguir os caminhos do coração nem sempre pode ser uma boa saída para a tentativa de fuga dos limites humanos, os quais são erroneamente interpretados como empecilhos à construção de nossas 'torres profanas'.

Portanto, qualquer semelhança não é mera coicidência, uma vez que a cidade de Ninrode era apenas uma espécie de prelúdio e tentativa frustrada do Super-Man americano, o qual "caiu do céu", como se para lá a geração do poderoso caçador houvesse migrado, transfigurando-se nessa espécie de 'semi-deus', para o qual o destino reservou o solo norte-americano como segunda casa. Que coisa inusitada, a pequena - super - criança agora está sob os auspícios do centro imperial do planeta, o qual, à semelhança de Babel, não poupará esforços para difundir a boa nova a partir de seu aparato ideologizante.
E nós, o que temos com essa história toda? Bem, ao que me parece, a lógica nos dá a relação existente entre a ideologia imperialista dos USA através da ficção e a não menos macabra novela brasileira, pois basta só que utilizemos as premissas certas que a conclusão brotará facilmente.
Vejamos: um país que não se livra da síndrome colonial não supera a limitação de não acreditar em sua própria originalidade; nessa perspectiva, resta-lhe, como "ilha", na qual a 'Santa cruz' é a vigilante torre imperial que não lhe desvia o olhar, produzir, à semelhança cultural do império, os seus super-bizarros, cujos idealizadores parecem conhecer apenas os piores caminhos do coração; a língua também representa um dos componentes essenciais à hegemonia imperial, pois, conquanto Deus a tenha dinamizado, heterogenizando-a como castigo, a soberba torre contemporânea busca uniformizá - la, e sua cartilha não limita - se ao anglicismo que, em certa medida, reflete um salutar dinamismo linguístico, mas expande-se para a idéia de que devemos copiar-lhe qualquer manifestação artística, ou seja, devemos falar a língua deles.
De certo que o avanço proporcionado pela engenharia genética e tantos outros ramos das ciências empíricas têm aberto portas para a imaginação e realizações outrora inconcebíveis, uma vez que, de certa forma, já estamos produzindo mutantes, os quais podem ser identificados pelo percentual de silicone e toxina butolínica que seus organismos carregam, e agora a tv brasileira importa mais um delírio do tio Sam, cuja influência não mais se limitará ao alienante modo de comportamento social através do vestir, falar e intervenções cirúrgicas, mas, quem sabe, pela exacerbação da pseuda crença na epopéia humana de avançar seu aperfeiçoamento genético.
Que Deus nos proteja.