O deserto certamente não se mostra a mais convidativa das regiões, ao contrário, se nos afigura inóspito, carregado de vazios, silêncio aterrador, lugar inundado pelo vácuo do abandono. Porém, foi esse cenário antitético à beleza imediatamente perceptível o palco no qual um homem, cuja aparência inapreciável do ponto de vista dos cultores de uma simetria platônica, resolveu subverter a lógica a partir da decisão de lá exercer a sua pregação profética.
Há dois mil anos a perplexidade assombrou os mortais no Oriente médio, ou, se preferir, Ásia Menor, região que parece marcada para ser o centro nervoso do planeta, pois um profeta resolveu cingir os lombos como quem se imanta de uma justiça estranha aos homens; entregar-se a uma dieta capaz de escandalizar ao paladar mais tosco e bradar a voz ao vento, sob a convicção de que este é a mídia mais poderosa para veicular sua mensagem, mais que o terror dos homens-bomba a perplexificar o Ocidente em suas suicidas missões.
Eis então aquele a quem Cristo afirmou não assemelhar-se a um "caniço balançado pelo vento", tampouco alguém vestido em ricos trajes, mas o maior dentre os que de mulher haviam nascido, ressalvando, porém, que menor era este que o mais humilde cidadão de Seu Reino: o Reino dos Céus.
De fato a presença de João Batista no deserto inaugurou um período singular na história do reino de Israel, pois, a seu respeito, uma antiga profecia o identificava como "anjo", a "voz do que clama no deserto", enviado adiante da face de Cristo, o Messias rejeitado pelos seus e cuja tarefa era preparar o caminho do Senhor. Porém, há aspectos na missão de João extremamente ricos, sobretudo pela sutileza em que se apresentam.
Embora João não houvesse inaugurado o rito do batismo nas águas em Israel seu exercício se distingue de manifestações anteriores, já que o "segundo Elias" propõe aos que ao deserto vão encontrá-lo, a recomendação de que produzam "frutos dignos de arrependimento".
Ora, João Batista propõe aos que para as margens do Jordão eram impelidos ao despojamento das mazelas da alma, oferecia-lhes não uma fanfarrice, um culto a si mesmo pela suposta exteriorização de conversão a Deus; pelo contrário, João menciona que há alguém maior do que ele, do qual não era digno de levar as alpercatas, o Enviado que os batizaria com fogo e com Espírito Santo, demonstrando, de maneira inequívoca, que o batismo é ato contínuo, um permitir-se guiar constante pelas águas de repouso.
Há no entanto um traço de inegável poesia no ministério desse profeta, pois o deserto não seria a dimensão espacial própria a receber a eleição de campo evangelístico; sob as categorias humanas o deserto não é campo para semear, tampouco colher os frutos de uma entrega incondicional à seara de Deus. Lá nossos temores se exasperam; nossas fraquezas revelam a pequenez humana; as tentações se aconchegam na cumplicidade do silêncio e da solidão, e, mais que isso, no deserto não há gente, e sim a fantasmagoria de um passado antiquíssimo, onde o que foi já não é mais, e o que há de vir é apenas o indomável bailar do vento.
João é um homem sem estratégias, despido da mais sutil presunção missionária; é alguém disposto a viver e cumprir tão somente a missão que o Altíssimo lhe confiou. E o faz num cenário impensável...Porém, as almas cansadas vão ao seu encontro. Ali não há templos suntuosos, mas o céu como abrigo; não há reservatórios de água, mas o caudaloso rio a serpentear e oferece-lhes frescor; não há sacerdotes a pregar em plataformas, mas um homem a indicar-lhes a simplicidade do Caminho.
O deserto é mesmo um elemento revelador... A ele associamos sede, sol inclemente e vazio. Mas é para lá que o Batista foi clamar. Ali, no aparente nada, que o transbordar das muitas águas aliviou a sede de inúmeros; foi no deserto que as duras repreensões divinas soaram como cantigas de ninar; onde homens revelaram sua fragilidade tendo o sol e as águas do Jordão como testemunhas; foi ali que um certo João nos ensinou que devemos renunciar às máscaras e
sermos apenas o que somos, seres absolutamente dependentes Daquele que é Maior ao dizer: "É necessário que Ele cresça e eu diminua".
O exemplo de João nos ensina, dentre muitas coisas, que é necessário aprendermos a caminharmos nos desertos de nossa existência; aqueles cujos ventos da tolice e do egoísmo noticiam em redor o quanto refrigerar-se nos Jordões da humildade aquieta a alma, pois assim reconheceremos os limites de nosso papel na caminhada existencial, e aceitaremos que, diminuindo nós e crescendo Cristo, clamaremos a pacificação aos corações humanos num mundo desertificado.
sábado, 25 de julho de 2009
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