quarta-feira, 8 de abril de 2009

A farra do boi

A violência na cidade de Salvador constitui o tema favorito de emissoras locais que a exploram ostensivamente a partir da espetacularização dos infelizes, tornados protagonistas num circo dos horrores cuja legitimação é concedida pela própria sociedade baiana.
Inegavelmente, violência rima com audiência, e essa máxima tem se expressado num alarmante exemplo de deserviço jornalístico prestado por indivíduos supostamente carismáticos, portadores de um discurso inflamado contra as mazelas sociais e que se intutulam porta-vozes do povo, representantes de uma espécie de jornalismo às avessas que contraria qualquer noção ou prescrição ética, visto que se orientam a partir da ridicularização dos eleitos "inimigos da ordem pública" - geralmente jovens negros e pobres oriundos das periferias soteropolitanas.
É impressionante constatar o conteúdo racista e discriminatório presente na fala dos atores dessa ala da comunicação baiana, e tal constatação pode ser feita por qualquer pessoa minimamente inteligente, sobretudo em razão da indignidade com que tais programas se comportaram no carnaval de 2009. Durante a folia momesca, em flagrante acordo com o governo do Estado, venderam a imagem de um carvaval de paz, tributaram ao mesmo Poder público que, com disfaçatez costumam criticar, os mais acalorados elogios; à polícia militar, renderam mil congratulações, mas não é de se estranhar, pois, parece haver dois Poderes vigentes: um durante e outro após o carnaval. A polícia, "responsável pela limpeza" (entenda-se extermínio de jovens pretos e pobres no pós-carnaval), não mediu esforços para salvaguardar a integridade física dos turistas - inclusive dos que aqui desembarcam para a prática do turismo sexual pedófilo. Os policiais militares, bem como os civis, cumpriram condignamente o seu papel, e, num fiel retrato de suas respectivas competências, superlotaram unidades de detenção com uma enorme massa de jovens igualmente pretos e pobres - homens e mulheres.
Nada de novo em nosso "Haiti".
E a tal imprensa do espetáculo, marcando presença na cobertura, embalada por Dalila e cheia de Kuduro, distribuia bajulação aos artistas - figurinhas carimbadas, fabricadas pela indústria dantesca de um carnaval que discrimina e exclui o povo de sua própria terra. Porém, a maior violência no carnaval 2009 seria perpetrada exatamente pelo pseudo-jornalismo, e, num desses horrendos programas, foi veiculada uma matéria - ou chamem do que quiserem -, onde aproximadamente trinta jovens (pretos e pobres) eram covardemente escarnecidos por um repórter, todos detidos por estarem supostamente envolvidos em brigas. Havia um, acusado de ter furtado a corrente de um turista estrangeiro, cuja humilhação me fez lembrar as caçadas empreendidas pelos capitães do mato, em geral também negros a serviço da classe hegemônica que, ao ser confrontado pelo turista - acima de qualquer suspeita e que não pronunciava uma palavra sequer em português -, clamava inocência, quando o então apresentador da tevê record mandava repetir um milhão de vezes seu clamor patético, tendo ao fundo uma música ridícula, onde o mesmo repetia: "olha a cara dele!" Essa frase, se bem analisada, reproduz os velhos estereótipos que os faz acreditar que a presunção de inocência não é compatível com a fisionomia de um preto, me levando afirmar que o poeta, se aqui estivesse, exclamaria: "Senhor Deus dos desgraçados, quanto horror perante os céus!"
Diante desse brutal cenário - perplexo pela inércia dos modorrentos agentes sociais que mais parecem estar tomados por uma espécie de embriaguez dionisíaca, incapazes de dedicarem um mísero tempo de questionamento a esta "farra do boi" -, não consigo enxergar senão a marca do velho darwinismo social do século XIX, consubstanciado na atual 'indústria da desinformação' baiana. Essa tem protagonizado o papel de difusora de um projeto racista secular, baseado na tentativa de animalisar o negro, suprimir sua dignidade atráves de estígmas que outrora buscou fundamentação na ciência biológica. Assim, após a morte de Darwin, consolidou-se uma corrente científica seduzida por sua teoria da evolução por seleção natural (darwinismo social), a qual postulou a idéia de que, analogamente aos princípios seletivos presentes nas interações biológicas, a vida social subordinava-se a tais processos; ou seja: o surgimento de características positivas nas espécies, propiciando-lhes adaptação adequada ao meio, tendiam a prevalecer, superando-se uma etapa num lento e complexo ciclo evolutivo que culminaria no aparecimento de uma nova espécie, mais apta; do mesmo modo, pressupunha-se que a evolução por seleção natural aplicava-se à vida em sociedade e, por inferência, brancos corresponderiam a uma etapa superior no ciclo evolutivo, e negros a uma categoria que só diferiria dos animais em razão da capacidade da fala.
Nesse sentido, pensar criticamente sobre esses espaços midiáticos constitui-se a pedra de toque para enxergarmos que os mesmos ampliam terrivelmente a vulnerabilidade de nossa comunidade negra, pois, se no passado o darwinismo social estendeu-se para a concepção eugênica (convicção na "pureza da raça branca" presente no discurso nazista na alemanha, Ku klux klan nos EUA, Africa do Sul e tantos outros onde a imprensa atuou como instrumento de legitimação), esta atual e caricata ala da imprensa baiana engaja-se no firme propósito de demonstrar uma espécie de "impureza" dos negros, materializado na singular expressão "pombo sujo".
Nessa perspectiva, a sombria lembrança de Cesare Lombrozzo é inevitável, pois esse italiano contribuiu decisivamente para o alargamento da ideologia racista no século XIX atráves de sua visão criminológica baseada na idéia do "criminoso nato". Nesse contexto, vale ressaltar que o mesmo viria influenciar fortemente o baiano Nina Rodrigues (lembrança igualmente sombria e referência máxima na medicina legal do Brasil) que, por meio de seus exames antopométricos - medidas de crânios de cadáveres de homens negros -, afirmaria que estes possuiam um significativo grau de inferioridade na escala humana, e, portanto, fortemente vocacionados ao crime.
Nessa direção, portanto, é claramente perceptível de que matriz resulta esta vergonhosa violência da imprensa baiana, tomada como referencial sombólico-discursivo que entorpece a sociedade como um todo, onde as mensagens ocultas contidas não apenas nas imagens dos corpos dos jovens negros violentamente assassinados como nos bordões "você tambem pode estar na mira" e "passa o rodo", concorrem para a legitimação da violência e do discurso racista na Bahia.