sábado, 23 de maio de 2009

Comunidade dos felizes


O palhaço é um dos personagens mais fascinantes que existem. Sua irreverência não encontra limites. Impressiona pela ludicidade, malícia e desfaçatez que brotam de cada ato realizado, seja uma piada ou brincadeira que constrangem e ao mesmo tempo alegram. Quem nunca riu de uma performance desse cara-pintada, cuja imagem, para mim, sempre foi a caricatura tradutora de uma certa alegria triste, um temor que o anima a atuar pelo medo de que as luzes da ribalta se apaguem?
Sempre apreendi o circo - a casa do palhaço - como um microcosmo refletindo nossa tentativa a permanecer no faz-de-conta, pelo fato de que nem sempre levamos em conta o tempo que desperdiçamos longe da alegria. O cenário circense compreende uma extensão daquela dimensão interior escondida, na qual é possível e adequado ser um peixe fora d'agua, um cisne entre patos, um sapo-príncipe capaz de encantar a mais linda donzela.
Assim como não há festa sem anfitrião, não pode haver circo sem palhaço: ele é o maestro sob as lonas; o picadeiro é seu palco, território impenetrável aos que não sabem fazer da vida um eterno festim.
O circo é a comunidade dos felizes, e o palhaço, qual poeta a ritmar gestos e frases aparentemente desconexas, reflete a graça estereotipada da criança em tenra idade - alegria caótica em meio à ordem do encanto.
O circo acorda, se ergue. Nele, o palco é comum a todos. O trapezista voa, num vai e vem hipnótico e de pura tensão; o equilibrista impressiona pela destreza, e o palhaço, um trapalhão sem igual, é a inequívoca desordem da alegria.
Nossa vida deveria reproduzir a arte circense, caracterizada por um incessante desejo de celebração. O problema é que o palhaço, dentro de nós, quase sempre é preterido pelo desafio do trapézio, com suas idas e vindas, e, quando dele cansamos, só resta nos lançarmos a alguma rede de amparo. À semelhança do circo, o trapézio da vida se compõe de uma apreensão, uma vontade de que a incerteza do vai e vem logo acabe, e, se ao final saimos ilesos, então lembramo-nos de que só uma boa palhaçada para alegrar o coração.
Em uma sociedade marcada pelas emulações insanas, valores deturpados, consciências cativas a um sistema que forja seres supérfluos como crianças a girar num carrossel de vaidades, a palavra palhaço passou a ser pejorativamente designada representação da imbecilidade humana. Nos palcos ilusórios da arrogância, o palhaço não tem vez, recebe o castigo do degredo por se insurgir contra os que tentam negá-lo através de uma alegria artificial dos seres claudicantes de um picadeiro sem graça. Para o palhaço, "o show tem que continuar", pois nele mora a alma do artista, um artífice a dar forma ao seu objeto: o riso.
Paradoxalmente, os que claudicam tentando negar-lhe a maestria na arte de fazer rir, sempre o invocam para servir a seus propósitos, ou não é verdade que os maus políticos, por exemplo, se nos afiguram palhaços ao investir-se de uma retórica pitoresca?
Ao palhaço, cultor da arte rara ( fazer rir), devemos abrir as portas do coração, para que não seja mitigada a alegria, amparo às inevitáveis quedas que experimentamos. Cultivemos esse companheiro oculto presente em nosso interior, sob pena de mergulharmos nas trevas do mau- humor, no fardo da neurastenia precoce. Iluminemos os candelabros que aquecem o coração com boas palhaçadas e perseveremos em vigílias constantes para que essa chama nunca se apague.