sábado, 26 de julho de 2008

A arte da língua portuguesa




Não te amo mais.Estarei mentindo se disser queAinda te quero como sempre quis.Tenho certeza de queNada foi em vão.Sei dentro de mim queVocê não significa nada.Não poderia dizer nunca queAlimento um grande amor.Sinto cada vez mais queJá te esqueci!E jamais usarei a fraseEU TE AMO!Sinto, mas tenho que dizer a verdade: É tarde demais...

Agora leia de baixo para cima a partir do início de cada frase.
Pura arte de
Clarice Lispector

Falcão: Meninos, famílias e o tráfico




A perplexidade e apatia da sociedade brasileira frente ao crime que seduz, encarcera e ceifa a existência de uma parcela importante de nossa juventude, revelam que a família constitui-se como referencial primaz para o implemento de políticas públicas capazes de operar resultados não apenas pelo pragmatismo da norma jurídica, mas, principalmente, pelo norteamento dos valores da matriz familiar, os quais legitimam, de forma inconteste, a nossa condição humana.
Na direção desse pensamento, encontra-se a dimensão da subjetividade, a qual capacita o indivíduo a humanizar-se, à medida que esse valora o mundo que o cerca, pois o mesmo encontra-se num plano histórico e cultural. Nesse sentido, o engajamento de dois jovens brasileiros, o cantor de rap MV Bill, e o produtor musical Celso Athayde, ambos naturais do Rio de janeiro, extrapola a percepção de seus papeis social e histórico, pois “o bom combate”, expressão cunhada pelo apóstolo São Paulo, encontra, por assim dizer, reflexo e expressão no discurso e ação desses artistas.
Pois bem, percorrer a carreira e guardar a fé identifica o espírito com que Celso e Bill entregaram-se à realização de Falcão-Meninos do tráfico, um aldacioso projeto que consumiu oito anos de trabalho (1998-2006) percorrendo o Brasil em busca de compor um documentário que retratasse a vida de jovens envolvidos com o tráfico de drogas, cuja proposta era colocar em relevo as angústias, contradições, sonhos, esperanças e traços das relações familiares dos mesmos, e, ao ser veiculado na maior emissora do país, provocou fortíssimo impacto na sociedade brasileira.
A proposta inicial desdobrou-se à feitura do livro homônimo, o qual visa reproduzir os bastidores da gravação do documentário, bem como convidar o leitor(es) a uma reflexão sobre o tema, preconizando que “cada um de nós tem que se despir de todo ódio que nutrimos e de todo medo que desenvolvemos a partir dele”.
Fé, sonho e luta são palavras-chaves do livro, as quais transitam de maneira fluida e permanente, e constam na abertura, onde os autores, a partir de um verso, evoluem para a afirmação de que sabem “exatamente o peso do martelo que se encontra do lado de lá, pois por ele também já fomos martelados” - desabafam. Essa imagem traduz uma postura determinada a não permitir que as suas próprias vidas se diluam na perplexidade conveniente dos que fazem do exercício de ‘cruzar os braços’ o seu mantra favorito.
O livro Falcão-Meninos do tráfico foi escrito em gênero eminentemente narrativo, buscando cumprir assim a idéia esboçada por seus autores desde as primeiras linhas, uma vez que afirmam, e o fazem ao longo de toda a obra, que o propósito maior do projeto é o de produzir reflexão nos leitores. E de fato conseguem, à medida que o texto se faz ritmar sob uma linguagem ácida e implosiva, pois os mesmos não deixam passar incólume até mesmo prenoções que circulam em seu próprio inconsciente, fruto da ideologia de uma elite que, segundo Athayde, se faz sintetizar na frase “o sistema é branco e opressor”. Esse dardo inflamado de provocação revela uma certa ambigüidade no aparente sinal de isenção esboçado por eles, ao afirmar que a reflexão se constitui no objetivo fundamental da obra. Tal postura não deve, no entanto, ser lida e reduzida como contraditória, pois não desconsideremos o fato de que Bill e Celso estiveram “no olho do furacão”, ou seja, a opção de romperem com o propalado “determinismo” da falta de oportunidades lhes confere uma desenvoltura tal, que impõe o risco de confundir-se com parcialidade, embora tal elemento seja inevitável, uma vez que o livro caracteriza-se pela coragem dos autores marcarem, de forma inequívoca, sua posição em relação ao tema.
Bill e Celso encabeçam o projeto CUFA -Central única das favelas-, na qual buscam contribuir para o resgate da auto-estima daqueles que o sistema não enxerga. Dar visibilidade ao drama dos falcões se mostra deveras difícil, pois, no livro, os autores acentuam a falência das ações do Estado nessa questão, as quais se reduzem a uma eminente e inoperante política de repressão policial, observando também a falta de interlocução no seio da própria sociedade brasileira ao não enxergar a condição humana desses jovens.
Embora todos reconheçam a indissolubilidade da noção da família constituir-se em partícula-mãe da sociedade, percebe-se que o livro transita numa espécie de campo minado, pois em um dos relatos, Athayde discorre sobre uma, dentre tantas experiências impactantes que teve ao longo do projeto, na qual testemunhou o desespero de duas mães: uma chorava a morte de seu pequeno falcão, e a outra, de seu filho PM, morto em combate. Nesse episódio, não lhe escapa o fato de que as duas são pretas e pobres, vítimas de um mesmo drama, de um mesmo sistema, da mesma violência que lhes marcará a alma para sempre. Ora, onde estaria então o pomo de contradição nesse acontecimento tão corriqueiro? Para os autores, reside na falência do vigor de todos nós: do Estado, pois os seus equívocos e incompetência refletem um descompromisso histórico; da sociedade, pois a mesma desconhece o seu papel de artífice desse mesmo Estado, e opta por enclausurar-se, omitir-se, empurrando-nos a um beco aparentemente sem saída. E nessa ação de “limpeza” perpetrada pelo Estado brasileiro no âmbito das ações policiais, Celso identifica uma cruel realidade, na qual o aparelho estatal funciona como anteparo a uma classe dominante, a qual, bem como o Estado, não compartilhará das lágrimas das duas mães, que, segundo o próprio escritor, “podiam perfeitamente ser irmãs de sangue e, naquele momento, eram irmãs de dor, irmãs de sangue derramado pela arma da ignorância”.
Eis uma das abstrações possíveis que se pode realizar acerca deste inquietante livro, ou seja, a compreensão de que as ações públicas devem guiar-se sob a noção de que elas incidem, em todas as suas dimensões, sobre um núcleo social a que denominamos família, seja qual for a sua configuração, do qual emergem os elementos mais sublimes que saltam da subjetividade humana, os quais nos norteiam a uma vida repleta de inventividade, e que se traduzem em esperança, fé, compaixão, alegria, amor, os quais refletem, em qualquer comunidade, seja ela situada na Vieira Souto ou na Cidade de Deus, o quanto a nossa complexidade nos torna diferentes e tão maravilhosamente iguais.


“Olha aí! É o meu guri!”


A significância da família para os jovens cognominados falcões não é de fácil compreensão, pois a mesma figura, de acordo com os registros verificados ao longo de todo o texto, como o elemento no qual os mesmos se ancoram para justificar a sua permanência no universo do crime, revelando uma contradição perturbadora, uma vez que seu ingresso representa um cisma devastador na esperança de realização de um outro caminho, à medida que as estatísticas acerca da expectativa de vida, bem como um implacável e violento ataque ideológico promovido por todos os segmentos sociais diluem, dia a dia, as chances de uma ruptura com o tráfico de drogas.
A família constitui referencial fundamental à vida de qualquer pessoa, inclusive na dos pequenos falcões, e tal componente é constantemente mencionado nas entrevistas realizadas. Porém, a forma como esses jovens decodificam e interpretam o seu papel no seio familiar reflete um distanciamento, uma evasão de si mesmo, uma quase absoluta solidão, a qual se faz aparentemente superar quando afirmam ser os mantenedores de seus lares. Esse papel encontra correspondência no fato de que boa parte desses garotos tem esposas, filhos, enfim, já incorporaram (forjam) precocemente uma identidade, a qual se realiza através da autonegação, da rejeição de sua própria infância.
“Cara”, alcunha pela qual os autores denominam um dos jovens entrevistados, testifica a percepção de que seu papel está circunscrito ao cumprimento de deveres com a família e o tráfico, pois diz que sua esposa deu à luz um “neném”, e a possibilidade de saída do tráfico se esvai uma vez que pleitear um emprego significaria não poder sustentar a criança: “Minha mulher? Ta lá no hospital agora. Teve neném quase agora. Aí, ta lá no hospital com o neném, aí mesmo é que eu não posso sair mesmo, porque tenho que ajudar ela mais ainda e ajudar minha filha que nasceu agora, entendeu? Se eu sair para ficar procurando emprego, como que eu vou sustentar minha filha? Não tem como”.
A mulher, a mãe, o filho, os irmãos, estão sempre à margem, sempre à espera desse ‘herói’ que faz da vigilância noturna uma transcendência para seguir em frente, na qual reveste-se dos traços que caracterizam o mocinho e o bandido.
Concluir simplesmente que a família desses jovens falhou ao não conseguir cumprir o papel de espaço primeiro para a construção e expansão de um indivíduo pleno do ponto de vista intelectual e afetivo, significa mascarar o problema, conduzindo-nos ao risco de um reducionismo causal que não responde de forma convincente, pois a violência que é parte integrante e constituinte do caráter desses jovens, manifesta-se também como fruto da violência simbólica a que somos todos submetidos, diariamente, nos out doors, Shopping Centers, em todos os tipos de mídia, a qual muitas vezes colocam esses jovens diante de uma encruzilhada, ou seja, permanecer acalentando o sonho de incluir-se no restrito e perverso sistema neoliberal, ou buscar, com instinto e olhos de falcão, ao menos simular essa inclusão.




Falcão: um desafio para todos nós

As contradições de nossa ‘família-pátria-mãe-gentil’ remontam à linha divisória da exclusão, traçada no passado e mantida no presente, que se afigura “grego”, contribuindo cada vez mais para a convicção de que o típico retrato homogêneo da família difundida nos comerciais de margarina, pintados com cores em quadros televisivos, não mais disfarça as vísceras de uma sociedade que adoece em seus paradoxos.
Nesse sentido, os autores de Falcão-Meninos do tráfico, ao assumirem o desejo de reproduzir de forma fidedigna os bastidores do documentário, refletem uma certa rebeldia, pois suas biografias testemunham que ambos tocaram a mesma linha tênue que separa os que tenazmente resistem às sugestões das desigualdades sociais, dos que sucumbem ante as lacunas psíquicas cujo nascedouro reside, dentre outros, também na desagregação familiar.
Nesse contexto, os autores encetam, ainda que de forma implícita, uma sutil convocação ao enfrentamento deste enorme desafio, do qual o Brasil insiste em evadir-se, qual seja criar alternativas que se interponham ao caminho sedutor da criminalidade para jovens vulnerabilizados pela ineficácia das quase inexistentes políticas públicas. Ambos concordam que o tema é extremamente difícil, de acordo com suas próprias palavras, “a questão é ampla, complexa e historicamente concentrada, tal como a renda do país”. Nessa perspectiva, os mesmos compreendem que o agravamento das mazelas sociais além de ligar-se à tão conhecida péssima distribuição de renda vincula-se à não menos péssima distribuição de responsabilidades. Contudo, embora não discursem no sentido de oferecer um “veredicto” para a questão, provocam os leitores ao afirmarem que a interpretação do tema tratado deve ser feita “da forma que cada um conseguir”.
Á medida que se lê Falcão-Meninos do tráfico, percebe-se que, embora os autores observem a transversalidade do tema, pois o mesmo se faz conectar a qualquer dimensão da existência social-humana, ou seja, educação, saúde, habitação, segurança e tantas outras, os mesmos enfatizam que o assunto do livro é a vida desses jovens que se encontram em “situação de risco”. O estímulo que moveu Bill e Celso a se colocarem como porta-vozes de uma questão tão delicada reside, sem dúvida nenhuma, no trabalho que ambos já desenvolvem em suas próprias comunidades - Cidade de Deus e baixada fluminense -, porém não escapa o fato de ambos assumirem, publicamente, o grande referencial que suas mães representam em suas vidas. Celso Athayde expressa no próprio texto a admiração e afeto por aquela que resumiu ser sua maior inspiração; Bill, em entrevista ao programa do Jô da tv globo, já manifestou semelhante sentimento. Portanto, é perceptível que esses referenciais influenciaram em alguma medida esses ativistas das causas sociais num projeto de tamanha envergadura, pois os falcões, ao longo da obra, referem-se com muita freqüência às suas mães, seja para narrar que as perderam muito cedo, como também para justificar a sua entrada para o tráfico de entorpecentes. Embora a identificação dos autores não se evidencie de forma explícita nesse aspecto, ela se faz observar à medida que os mesmos afirmam, de maneira categórica, que o trabalho se funda na vida desses jovens, o que os leva, conseqüentemente, ao centro da relação intrafamiliar dos mesmos, no qual a mãe, - não o pai – figura como o maior de seus vínculos.
Portanto, o livro expressa uma inquietude que extrapola a noção de que o posicionamento de Athayde e Bill reflete apenas um desejo de mobilizar-se em razão de ambos vivenciarem uma realidade que produz três alternativas: engajamento, fuga ou conformismo, mas, também, clareza do quanto o ser humano é um ser político. E esta obra nos mostra que é possível refletirmos e encontrarmos alternativas juntos, pois se os falcões resultam, também, do desmantelamento familiar, essa (família) se fragmenta como conseqüência de nossa inércia, e as saídas estão dentro de nós, a partir de nós mesmos. Nesse sentido, é oportuno parafrasearmos os autores: “Mas não importa o tempo que precisaremos para sermos compreendidos, para sermos ouvidos. A única coisa que nos importa é que a luta tem que continuar.”