terça-feira, 19 de maio de 2009

Fábulas para o coração


Desde cedo, a tensão é componente permanente no campo das relações humanas. A vida pueril, embora mágica, grávida de fantasias e sonhos, não exclui os choques entre os indivíduos. Essa realidade é verificada no próprio processo de construção de amizades, onde as crianças nem sempre se identificam instantaneamente umas com as outras. Essa é uma etapa importante, a partir da qual se constituem as escolhas, predileções, opções pela tolerância em nome do afeto, representando os primeiros sinais para elaboração de uma estética comportamental includente.
Infância e amizade são binômio pivotal no campo de construção da subjetividade humana; fase e substântivo, ruas transversais, continente e contido, pólos que não se antagonizam, antes, se entremeiam um no outro para formar o lindo projeto de humanidade, pois não é difícil constatar que a criança é promotora de um olhar capaz de afinizar os descaminhos, compatibilizar os opostos, e isso a partir do encanto, da inocência e de uma 'paz perturbadora'.
Essa percepção se apederou de mim quando prôpus a meu sobrinho de cinco anos brincarmos de contar historinhas. Ele não estava muito afim, queria era brincar de monstro (claro que o monstro seria eu, e ele o super-herói), mas consegui dissuadi-lo ao inventar uma esdrúxula narrativa do encontro da sucuri ziguifrina com o tamanduá bandeira. Contei-lhe que ambos são espécies típicas do nosso Brasil; a cobra possuia um mortal abraço e o tamanduá o insólito hábito de comer formigas. Ao avistar Ziguifrina, o ingênuo tamanduá aproximou-se e a cumprimentou. A cobra muito astuta, encaminhou-se para abraçá-lo. Ele consentiu, porém, percebeu que aquele abraço demorava e o oprimia muito, quando então sugeriu à sucuri que lhe permitisse beijá-la. Tendo-o muito próximo ao corpo, sabia ela que o inocente tamanduá jamais lhe escaparia, por isso resolveu aliviar-lhe um pouco a opressão, consentindo o beijo. O que ela não sabia é que o pequeno bandeira, como era conhecido, trazia à boca uma centena de formigas saúvas, que foram de pronto depositadas em suas entranhas, fazendo-a contorcer-se a ponto de disparar em direção ao rio, desesperada para livrar-se do cardápio pedileto do 'little bandeira'.
Ora, não querendo dar trégua, pois já percebia meu ouvinte entre bocejos e piscar de olhos sonolentos ao final da fábula, despachei uma segunda. Agora, tratava-se do encontro do ursinho coala e a mamãe canguru.
A mamãe canguru buscava ao pé de uma árvore algum alimento para ela e seu filhote; o coala, agora órfão, pois se desgarrara de sua mãe, trepava nessa mesma árvore para comer folhas. Lentamente, o ursinho se dirigia a um galho, quando viu a mamãe canguru colhendo frutos. Isso o encheu de cólera, pois adotara aquela árvore como lar, cujos percipiendos frutos lhes pertenciam - dizia ele -, numa inarredável demonstração de convicção jurídica, que o compelia a uma espécie de exercício de cidadania animal.
Gritou alto:
- ei, não pegue os meus frutos!
A mamãe canguru respondeu:
- Mas você nem os come. Não fazem parte de sua dieta.
Nesse instante, o coala, exasperado pela emoção do embate, despencou da árvore, e veio pousar na bolsa da mamãe canguru, reunindo-se a seu filhote. Um pequeno bate-boca se iniciou, pois o bebê canguru não admitiu dividir o mesmo espaço com "um estranho no ninho", mas, ao tomar conhecimento de que o coala era órfão, instaurou-se uma atmosfera de compaixão e o pequeno ursinho incorporou-se à sua nova familia.
A essa altura, Vitor, meu sobrinho, já rendia-se a meu lado, tomado pelo sono, o que me levou a constatar que fui ouvinte e narrador, simultaneamente, de um delírio maravilhoso que só a infância e amizade dele poderiam provocar.
Esta experiência me levou a fortalecer a crença de que nossa alma pode, a despeito das tensões cotidianas, ser irrigada permanentemente pelas pulsões infantis, aquelas que revelam que a inocência pode produzir fugas criativas, como no caso do pequeno tamanduá; oxigenar a misericórdia, demonstrada na postura inclusiva da mamãe e bebê cangurus. Sei que podemos enxergar a infância - ao menos a lembrança dela - como o tempo em que os choques produzem alternativas para a comunhão, quando, por exemplo, dividiamos compulsoriamente um brinquedo com um primo que veio nos visitar no final de semana, onde as disputas conduzem todos à condição - ainda que alternando o primeiro lugar -, de campeões, pois no campo dos sonhos, das lindas viagens imaginativas, somos de fato.
Agora, a amizade de meu pequeno Vitor me faz robusto, com o coração cheio de fé de que um dia possa me tornar - ao menos para ele - um inescedível contador de historinhas.